11 de dezembro de 2006

Lembrança e olvido nas literaturas afrobrasileira e guineense ( www.geocities.com)

por Moema Parente Augel, da Universität Bielefeld

Tomando como ponto de partida duas áreas aparentemente bastante diversas, uma amostra da literatura afrobrasileira e uma da literatura guineense, pretendo refletir sobre o papel da memória e suas transformações dentro do fazer literário e seu aporte para a compreensão do passado recente tanto no Brasil como na Guiné-Bissau.

Um tal paralelo interessou-me por vários motivos. O corpus de uma e de outra dessas literaturas é limitado, a datação é recente e estão interligadas por uma série de temas semelhantes, embora muitas vezes o tratamento seja diverso.

Os setores dominantes sempre pretenderam fazer prevalecer a sua interpretação dos fatos passados e assim influenciar a sociedade, obscurecendo outras interpretações. A versão oficial da História vem sendo hoje em dia, entretanto, continuamente posta em questionamento pelos grupos até agora excluídos ou silenciados, tais como as mulheres, as camadas economicamente desprivilegiadas, as minorias étnicas ou sexuais - fenômeno característico do pós-modernismo.

No Brasil, para que o discurso oficial dos detentores do poder, da glorificação nacional, da estabilidade política e do louvor ao esforço em prol do desenvolvimento do país pudesse ser proferido, foi preciso que se silenciassem outras falas, que se fizessem calar outras lembranças, latentes ou vivas na população, e que se procurasse eliminar a memória popular que guarda em seu seio uma outra versão dos mesmos acontecimentos. A recente literatura afrobrasileira resgata a realidade histórica ligada ao processo da escravidão e suas conseqüências, reinterpreta o passado, numa atitude consciente contra o esquecimento de certos fatos e visões que seus autores pretendem recuperar, apresentando novas facetas de acontecimentos históricos conhecidos. O mesmo se dá na Guiné-Bissau, onde os escritores, principalmente os romancistas, quebram com a tradição jogralesca de louvor aos chefes tribais, recusando-se a fazer eco aos encomiásticos discursos oficiais, ousando evocar outras realidades, emprestando a voz aos esquecidos ou conscientemente relegados ao limbo da não referência.

Apesar de todas as diferenças, as duas amostras literárias que constituem a base do presente estudo são analisadas sob um aspecto importante (mas não único), comum a ambas: representam uma literatura de vencidos, lançando mão da reconstituição da memória como base de um discurso denunciador, dirigido contra um discurso oficial e hegemônico diametralmente oposto.

O mito da democracia racial e a estratégia desenvolvida pelo discurso hegemônico brasileiro para defendê-la e divulgá-la são desmascarados de modo decisivo e emocional pelos autores afrobrasileiros. Na Guiné-Bissau, vai importar aos escritores criar, através da sua ficção, e em parte também da poesia, um contradiscurso que desmantele o ufanismo e a mitificação dos heróis da liberdade da pátria, dos quais o passado guineense está impregnado. Os autores aqui mencionados - Abdulai Sila e Filinto de Barros - relativizam, através da literatura, a versão oficial da gloriosa vitória contra as forças imperialistas estrangeiras por parte dos atuais dirigentes do país. Estes se consideram construtores da nação, os herdeiros do espírito da luta, os legatários do partido libertador e os continuadores da obra de Amílcar Cabral, reservando para si mesmos a encarnação e a afirmação da dignidade do povo guineense, a fundação da sua nacionalidade, a preservação da unidade nacional num país que se festeja como multicultural, multi-étnico e mesmo multirracial.

Devido ao fato de a Guiné-Bissau ter sido apenas uma fonte de fornecimento de escravos e de mercadorias para os exploradores portugueses praticamente até grande parte do século XIX, a sua ocupação e colonização sempre foram muito precárias e sente-se até hoje as conseqüências disso. No campo da literatura, por exemplo, só nos últimos vinte anos, isto é, depois da independência (1973), que se pode detectar um certo florescimento, ainda incipiente e modesto. O Brasil tem uma história muito diversa e o fato de ser independente há já cento e setenta e sete anos, em contraste com os vinte e seis anos de emancipação da Guiné-Bissau, dá-lhe uma outra maturidade, por exemplo no campo da literatura, mas não lhe apaga as cicatrizes resultantes da colonização e do escravismo. Embora em épocas diferentes e por meios diferentes, ambos os países libertaram-se do regime colonial português que deixou graves marcas por onde passou. No meu estudo, o que me vai sobretudo interessar serão os caminhos percorridos pelo instrumental literário como um fazer em função de um contra-discurso oposicional e emancipatório.

A Guiné-Bissau e sua prosa ficcional

Na Guiné-Bissau, país de história recente em vias de grandes transformações sociais, a sua incipiente literatura reflete tanto esse jovem passado e os caminhos da emancipação como o estado emocional dos guineenses ante a decepção causada pelo que se considera a traição dos ideais revolucionários por parte dos dirigentes. A produção literária contemporânea faz eco, na sua variedade, aos anseios e às preocupações da elite intelectual urbana, inconformada com a situação política e social do momento presente. Assim, dada a quase inexistência de fontes escritas de informação, travar conhecimento com as obras que aí se estão produzindo desde a independência é uma das melhores maneiras de compreender e apreender este pequeno enclave de língua oficial portuguesa, de cerca de 36.000 km2, no meio da costa ocidental africana.

Com seus três romances (Eterna paixão, A última tragédia e Mistida), Abdulai Sila, que é o fundador da ficção guineense, não se restringe à simples constatação do desastre em que resultou a libertação do jugo colonialista, nem se detém apenas no desfiamento das mazelas que cobrem o povo guineense: vai procurar os responsáveis e os denuncia, direta ou indiretamente. Filinto de Barros, com seu único romance Kikia Matcho, desenvolve, a seu modo, paralelamente à trama romanesca, um amplo esquema de explicação para basear suas críticas e sua análise do momento por que passava seu país. Também ele levanta a voz e denuncia, põe o dedo nas feridas abertas pelos seus próprios correligionários1.

Os recentes acontecimentos na Guiné-Bissau, que culminaram com o desencadeamento da guerra fratricida que por mais de um ano (mais exatamente de 7 de junho de 1998 a 7 de maio de 1999) tumultuou e desarticulou o país, estão contribuindo para que o discurso oficial hegemônico se esvazie e perca a sua aura, reiterando de forma dramática a triste atualidade da urgência de uma reinterpretação da História guineense.

A literatura afrobrasileira

Hoje em dia não é mais possível ignorar a existência da poesia negra, da prosa negra e do teatro negro brasileiros. A literatura afrobrasileira tem a mesma essência, não importa que sua forma seja a poesia, a ficção ou o teatro. Tem como pano de fundo, como leitmotiv a questão ontológica, visceral do ser e do estar-no-mundo como negro numa sociedade que se diz e que se quer branca e como tal se comporta. Há temas que se repetem e sempre de novo aparecem, de forma insistente e catársica muitas vezes. Alguns deles são comuns à literatura guineense e africana em geral, mas outros têm a ver com a condição de diáspora em que vivem os afrodescendentes.

A literatura afrobrasileira é, desde o momento em que se quis e declarou como tal, muito recente, tão recente como a independência da Guiné-Bissau - e suas manifestações literárias. Mesmo tendo havido alguns precursores (lembremos aqui Solano Trindade, Lino Guedes), somente a partir da década de setenta que os escritores negros brasileiros passaram a publicar com regularidade e crescente freqüência2. Falta, entretanto, ainda muito para que seja conhecida e aceita pelo nosso mundo acadêmico e literário, lacuna que certamente não acontece por acaso.

Escritores como Solano Trindade e Lino Guedes, Oswaldo de Camargo, OLIVEIRA SILVEIRA, Cuti, Paulo Colina, Éle Semog, Elisa Lucinda, Miriam Alves, Geni Guimarães ou ainda Muniz Sodré, Joel Rufino, Eustáquio José Rodrigues, Edimilson Pereira, Salgado Maranhão, Lourdes Teodoro, Conceição Evaristo e muitos outros, todos eles declaradamente escritores negros, não podem mais ser silenciados e fazem parte definitivamente do cenário da literatura nacional. A partir da obra de alguns deles, ressaltarei algumas particularidades temáticas que estão mais diretamente ligadas a esta análise.

Na escolha dos textos que servem de base a este estudo, não posso deixar de levar em consideração certos aspectos relativos ao contexto sociocultural aqui ressaltado, transparecendo através da recuperação da memória coletiva, da revisão do passado colonial, da crítica à interpretação hegemônica da história, elementos comuns tanto aos afrodescendentes como aos guineenses. O verso é sempre um dedo em riste, diz Geni Guimarães no seu poema Parto sem dor (1993:36) e a literatura não pode ser tão somente deleite estético.

Lembrança e olvido

Nossas recordações pessoais vão muito além das nossas próprias experiências, envolvendo lembranças antigas e passadas. O passado aflora sempre, penetra nas experiências do hoje, matizando, influenciando nossas percepções.

As reminiscências de cunho pessoal, entretanto, possuem igualmente uma componente social, coletiva, pois "o grupo transmite, retém e reforça as lembranças, mas o recordador, ao trabalhá-las, vai paulatinamente individualizando a memória comunitária" (Chaui, 1987, p. XXX).

A memória coletiva, enraizada nas lembranças individuais, é de importância fundamental tanto para os indivíduos em si como para o grupo do qual fazem parte esses indivíduos, para a sua localização num contexto geográfico e social (seu estar-no-mundo) e também para a sua própria identidade (seu ser-no-mundo).

A memória é o resultado de uma prática humana, uma faculdade mental ou intelectual, devendo por isso ser exercitada, permanentemente dinamizada através de técnicas ou métodos chamados mnemônicos. Existem técnicas mnemônicas coletivas que têm por finalidade manter acesa a chama de lembranças de uma comunidade. Monumentos, estátuas, as paradas cívicas ou procissões religiosas são exemplos da técnica mnemônica coletiva (J. Assmann, 1993, p. 350 e ss.). O motivo e a finalidade dessas técnicas mnemônicas culturais é o asseguramento e a continuidade da identidade social, indispensável para a auto-estima do grupo (ibd.).

O não exercício da memória pode provocar o fenômeno contrário do esquecimento, do olvido, da amnésia e que pode ser tanto individual (fenômeno patológico), como pode ser também coletivo (fenômeno social). É ocasionado, por exemplo, pelo fato de certos acontecimentos ou pessoas, considerados pelo poder hegemônico como prioritários ou de maior importância, serem postos forçadamente em relevo para o reforço da própria imagem, levando ao esquecimento outros fatos ou indivíduos considerados então de menor importância ou mesmo completamente silenciados. Num estado autoritário, uma das formas simbólicas de impor e demonstrar a autoridade do governo pode manifestar-se através de rituais que enfatizam esse poder.

No Brasil, e da mesma forma na Guiné-Bissau, dá-se exatamente o que acabo de descrever: o poder hegemônico seleciona os episódios da história recente que têm que ver com os seus interesses e esquece - e faz esquecer - outros. Por exemplo, o papel dos grupos religiosos tradicionais foi considerado contrário à nova ordem nacional guineense, depois da independência, taxado de primitivo e portanto devendo ser ultrapassado, o que foi feito à custa de violências e crimes. No Brasil, também se podem encontrar exemplos da mesma atitude, como o caso dos núcleos de resistência escrava terem ficado esquecidos, não mencionados (ou só superficialmente) nem mesmo nos livros de História do Brasil.

Contra as verdades impostas, a literatura pode assumir posições capazes de serem analisadas como desconstrutivistas, uma vez que catapulta para a periferia do interesse dramático o que até então era considerado pelos representantes do poder hegemônico como essencial e absoluto, trazendo para o centro da leitura elementos até então vistos como de menor importância ou que foram mesmo completamente esquecidos, emprestando a voz a bocas subalternas e até agora inaudíveis.

Para Jacques Derrida, a desconstrução leva a uma prática política, a uma tentativa de desvendar ou desmascarar a lógica com a qual um determinado sistema mental - e com ele todo um sistema de estruturas políticas e instituições sociais - mantém a todo custo o seu poder.

Passado infame

A imagem do negro bom de bola, da farra e da festa, da mulata tipo produto de exportação - tudo isso tenta mascarar o fato de o negro estar numa posição de predominante desvantagem. Essa desvantagem tem suas raízes: com que intensidade o trauma da escravidão deixa marcas profundas na autoprojeção do afrobrasileiro está muito patente nestes versos de OLIVEIRA SILVEIRA, poeta negro do Rio Grande do Sul. Ele encontrou suas origens - como sugere o título de um dos seus poemas - tanto No leste/ no mar em imundos tumbeiros, / em malditos objetos / troncos e grilhetas, como também nos lanhos de minha alma / em minha gente escura/ em meus heróis altivos.

Esse passado, infame e desditoso, não pode nem deve ser silenciado: Passado infame,/ vou te charquear o lombo a laço./ Passado infame/ vou te sujar a cara a cuspe/ vou te moer o corpo a ferro. Mas te quero bem vivo/ pra renovar meu ódio justo/ e manter alto o meu orgulho (OLIVEIRA SILVEIRA, Passado infame).

Foram milhões os africanos por força levados para trabalharem no "novo mundo". E se a literatura nacional festeja e aplaude o magistral poema de Castro Alves, Navio Negreiro, ignora ou desconhece outras manifestações poéticas de imenso valor que expressam numa visão de dentro, o mesmo drama. A escravatura, a vergonha imensa na história da humanidade, levou ao brutal arrastamento de milhões de africanos para a América e foi comparada pelo poeta gaúcho a uma "charqueada grande":

Um talho fundo na carne do mapa: Américas e África margeiam/ Um navio negreiro como faca:/ mar de sal, sangue e lágrimas no meio// [...] e sal e sol e vento sul no corte/ de uma ferida que não seca nunca (OLIVEIRA SILVEIRA, Charqueada grande).

A interpretação da história hegemônica, povoando os livros infantis (e não só) da imagem do escravo passivo, cordato e bondoso, amoldado aos seus senhores, as "Mãe Preta", e os "Pai João" encontra viva resistência por parte dos afrobrasileiros contemporâneos que não querem se identificar senão com os heróis que se rebelaram contra o cativeiro: Sem essa de mãe-preta e pai-joão/ eu quero é o passado bom! // Na vontade mais funda/ e vulcânica de mim/ eu quero é o passado bom! / Eu quero o passado bom/ do quilombo dos negros/ livres no mato e de lança na mão/ Da guerra na Bahia - da negrada transbordando das casas/ derramando-se na rua/ de pistola e facão! ((OLIVEIRA SILVEIRA, Quero o passado bom).

Palmares reinventado

Toda a época colonial conheceu a reação ao regime escravocrata, uma cadeia ininterrupta de sublevações e resistência à ordem estabelecida pelo regime senhorial. O primeiro registro de que se tem notícia foi o de um quilombo na Bahia no ano de 1575. Daí em diante, o protesto contra trabalho forçado e a perda de liberdade não mais cessou. Não se tratou de pequenas revoltas pontuais e raras, como quer deixar crer a historiografia oficial, mas permanentes e diversificadas formas de resistência e de protesto, de inconformismo e de tentativas não só de fuga mas de reorganização da ordem social surrupiada pelo tráfico negreiro de Norte ao Sul do Brasil.

E é graças aos intelectuais negros brasileiros que se está resgatando contemporaneamente esse capítulo da história do Brasil, um dos temas preferidos pela literatura afro-brasileira. Palmares, o maior dos quilombos, símbolo da resistência e do orgulho negro restaurado, é assim cantado, entre outros poemas: Eu não te esqueço, meu povo/ se Palmares não vive mais/ inventemos Palmares de novo (José Carlos Limeira, Quilombos)

Não só a conclamação à revolta, mas sobretudo uma heroização dos antepassados ajuda a manter bem alto o orgulho e se envolve numa enorme força lírica. Zumbi, o grande herói dos quilombos, o senhor dos caminhos, como se expressa Jônatas C. da Silva, poeta baiano, que vê como tarefa do poeta: Resgatar tua presença/ tua firmeza de propósito/ de amor e liberdade/ pela raça (Zumbi é senhor dos caminhos).

E a exemplo do que aconteceu no passado, ainda: É preciso/ que se galgue/ a poeira levantada/ e se ache entre as palmeiras/ lanças/ guerreiras/ intactas (Abelardo Rodrigues, Em busca de Palmares).

O dia da morte do grande guerreiro é festejado hoje no Brasil inteiro, mais uma vez devido à iniciativa de grupos negros: Dia vinte de novembro/ entre as palmeiras do Palmar/ último grito de guerra no ar/ Dia vinte de novembro,/ entre as montanhas do Palmar/ os duros músculos do herói/ guiando seu braço ágil/ na luta desigual/ [...]) Dia vinte de novembro,/ entre mensagens do Palmar/ tambores de orgulho e brio/ conclamando a lutar ((OLIVEIRA SILVEIRA, , Vinte de Novembro).

É o Dia Nacional da Consciência Negra, em franca oposição às comemorações do treze de maio.

Izabel versus Zumbi

Na busca de possíveis recursos para manter a memória viva, por parte do poder hegemônico no Brasil, do que lhes interessa guardar relativo ao tempo da escravidão e ao período logo depois, sobressai o grande respeito que é prestado àquela que é considerada a mãe benemérita e salvadora dos cativos, a Princesa Isabel. Mas a famosa Lei Áurea não passou de um ato formal sem de fato conseqüências positivas para os que nela se enquadravam. Os afrodescendentes, 111 anos mais tarde, continuam sob os humilhantes açoites da pobreza, da exploração do trabalho, do desrespeito aos seus direitos.

Já em 1970, o poeta negro gaúcho (OLIVEIRA SILVEIRA, admoestava: Treze de maio - traição/ Liberdade sem asas/ Fome sem pão (13 de Maio).

A abolição da escravatura não foi seguida por medidas sociais nem econômicas que possibilitassem aos recém libertos um novo começo de vida. A respeito, Adão Ventura, de Minas Gerais, assim se exterioriza: Minha carta de alforria/ não me deu fazendas nem dinheiro no banco,/ nem bigodes retorcidos (Adão Ventura, Negro Forro).

Muito pelo contrário, afirma o poeta mineiro: Minha carta de alforria/ costurou meus passos/ nos corredores da noite/ da minha pele (ebd.).

Ou, como o paulista Paulo Colina, ironicamente conclui: A Princesa esqueceu de assinar nossa carteira de trabalho (Pressentimento).

A amarga realidade do quotidiano da população afro-brasileira reforça a dúvida na eficiência do 13 de maio. Assim, Éle Semog, poeta negro do Rio de Janeiro, manda um "lembrete": Liberdade se toma / Não se recebe./ Dignidade se adquire/ Não se concede (Se ela faz eu desfaço).

Mas o povo não se ilude e reage a seu modo. O aviso é claro e preciso: Quilombo não se destrói com tiro e tapeação/ quilombo é calombo grande que guarda a semente viva/ quilombo é riso rasgado/ ungüento pressa ferida/ feita com faca branca herdada por iô-iôs (Cuti, Resposta).

Em outro poema do mesmo autor, ele admoesta: Que os ancestrais apontem nosso melhor caminho!"/ [...] ninguém negue sua herança de umbigo!/ [...]. Há uma estrada a ser percorrida do lamento passado ao riso futuro/ por sobre as costas do tempo lanhadas de sofrimento/ [...]. Vamos destapar bocas de escravos sufocadas em cada/ poro do povo (Cuti, Veio).

Ou ainda: É tempo [...] reabrir [...] os espaços do quilombo/ [...] jogar lenha na fogueira da memória pra que haja luz e calor/ e ouvir histórias vividas de gente encarquilhada no pito/ e na palha do cigarrinho (Cuti, Ventania).

Muito se teria ainda a registrar tanto na poesia como na prosa afrobrasileira. Mas passemos ao outro elemento da nossa comparação.

A prosa contemporânea na Guiné-Bissau

Conquistada a independência, as novas burguesias e as novas elites estatais africanas conseguiram estabelecer um sistema de conservação do poder que passou a funcionar a todo preço, baseado na repressão, no partido único e no governo do "homem forte". O resultado foi que em muitos países se instalou uma oligarquia corrompida, preocupada com o seu próprio enriquecimento e com as suas próprias vantagens, enquanto que o povo continuou nas mesmas dificuldades, lutando por uma sobrevivência material e moral, cada vez mais miserável. As esperanças existentes outrora, quando o fim da colonização, cada vez mais próximo e concreto, animava aos que lutavam pela libertação, acenando para um mundo de igualdade e justiça, foram substituídas pela frustração, pelo derrotismo e pelo acomodamento3. Tal estado de espírito é comum a toda a África negra.

Na galeria de personagens de Abdulai Sila destaca-se, no seu terceiro e mais recente romance, intitulado Mistida, um desfile alucinante de figuras absurdas: Amambarka, Nham-Nham, Yem-Yem. Sobressai-se o aberrante e assustador Amambarka, parricida, ganancioso, viciado e execrável, cujos traços repugnantes foram hiperbolizados pelo romancista até a exaustão (cf. p. 87-96). Esse nome foi tirado da língua mandinga, sendo um lexema que tem conotação de coisa ruim, do que não presta. Nham-Nham, onomatopéia indicadora do ato de comer, é um ser repugnante e alienado, cego pelo poder, entorpecido pela bajulação, idiotizado mas perigoso, completamente dependente do diabólico Amambarka. Yem-Yem, o "carrasco", é outra figura intangível, enredado na busca da palavra esquecida (ibid., p. 161), aterrorizador das pessoas (ibid., p. 171).

Esses seres chocantes, porém, foram inspirados em pessoas reais, deformadas e caricaturadas, para os menos avisados impossíveis de serem reconhecidas mas nem por isso menos verdadeiras nem menos ameaçadoras, pois faz parte da arte de convencer lançar mão de recursos do horror. Os protagonistas de Mistida, aparentemente absurdas personagens, são verdadeiros atores da sociedade atual - e não só da Guiné-Bissau - e estão, cada um a seu modo, em busca de "estratégias individuais postas em jogo à procura de saídas e novos sentidos que permitam sobreviver à desestruturação", como disse Teresa Montenegro no prefácio. Mais uma vez, apesar dos horrores que enchem este seu terceiro livro, Sila lança sua mensagem de esperança, de teimosa esperança: existe uma perspectiva para seu sofrido país. Apesar dos montões de lixo, material ou humano, há as Mama Sabel, as Mbubi, as Ndani e as Djiba Mané, personagens femininas fortes e até certo ponto contraditórias, sumamente positivas, com as quais o autor se identifica e que personificam a comunidade subalterna, sem poder, mas vigilante e altiva.

Em Mistida, Abdulai Sila escolheu as vias oblíquas do absurdo e do paroxismo para pôr a descoberto o indizível, aquilo que, embora não tivesse sido esquecido, estava obliterado e silenciado. Esse caminho ziguezagueante tornou-lhe possível recordar um passado recente cheio de contradições e afrontar um presente já agonizante que se queria (ou ainda quer?) eternizar no futuro. Quem está seguindo os acontecimentos atuais na Guiné-Bissau pode, mais do que nunca, captar os lances terrivelmente proféticos de Mistida.

Filinto de Barros: acerto de contas com o passado?

Filinto de Barros afirma que seu romance Kikia matcho não passa de um pequeno exercício de ficção. Nem história, nem sociologia, nem etnologia, nem política, tão somente uma abordagem que se pretende dinâmica do processo de síntese sócio-cultural de um Povo (cf. Barros, 1998, p. 7).

O título é a designação crioula para o mocho e a essa ave são atribuídas na Guiné-Bissau propriedades diversas: pode ser mensageira do bem e do mal, mas sobretudo é ligada a maus presságios e à má sorte. Através do kikia e da sua simbologia, Filinto de Barros introduz o leitor e a leitora no mundo mágico e mítico africano ao mesmo tempo em que, pela interação das personagens, estabelece a ponte entre o passado e o presente.

Em seu conjunto, o livro Kikia matcho encerra uma soma de informações sobre o processo da independência e os primeiros passos de um Estado em formação. Essas informações são a razão de ser da obra, a estória constituindo apenas um pretexto. Ao mesmo tempo em que informa, ativo participante que foi da gestação e do momento desse parto, Filinto de Barros mobiliza os diferentes níveis da narrativa, direcionando-os tanto para o exercício dialético da compreensão do processo como para o julgamento dos seus resultados. Informação a nível do passado e interpretação a nível do presente, o romance deixa entrever sombrias perspectivas para o futuro. É sobretudo uma constatação dos acontecimentos contemporâneos com um olhar para o já acontecido, com o fito de esclarecer, explicar a situação atual do país.

O abandono sofrido pelos antigos combatentes da liberdade da pátria, cujo soldo não basta para um saco de arroz, é mostrado bem cruamente em Kikia matcho e seria um exemplo do desmascaramento intencionado pelo romancista Filinto de Barros.

Uma lembrança presente no coração do povo, que não faz parte da herança hegemônica, foi ainda evocada por Filinto de Barros que pôs a descoberto o fato do combatente morto ter perpetrado atos menos nobres, vergonhosos mesmos, não coadunando com a aura de heroismo que sempre envolve os "combatentes da liberdade da pátria". O autor ousou assim confessar o lado podre da gloriosa luta da libertação nacional, o abuso nunca mostrado às claras da utilização indevida das armas, evidenciando a perversão da "cultura da guerra", presente não só no campo inimigo. O processo de revirar ou reverter certas ambigüidades morais e factuais, cristalizadas em poderosos mitos patrióticos, faz parte da construção social da realidade, para usar a expressão divulgada a partir de Berger e Luckmann na Sociologia4. Ela é desmontada aqui e confrontada com uma outra visão, oposta e desafiadora.

Somente alguns poucos meses após a publicação desse romance, a 7 de junho de 1998, como já disse, eclodiu no país uma revolta no seio dos grupos dirigentes, entre representantes dos heróis da libertação transformando-se em guerra aberta e dolorosa que, depois de onze meses de sempre renovados conflitos armados, encontrou uma solução, que esperemos seja duradoura, a 7 de maio deste ano de 1999. Os presságios do Kikia Matcho ou os horrores acumulados em Mistida parece se terem confirmado. O sangrento embate entre fracções do exército nacional e contra o povo que conta entre os mais pobres do mundo, relança o questionamento sobre a legitimidade do regime tido como revolucionário, há quase trinta anos no poder, e sobre seus dirigentes, em grande parte os mesmos desde a independência. O legendário e carismático PAIGC está onipresente no romance de Filinto de Barros. Os donos do poder estão caricaturados até a desfiguração no romance Mistida, de Abdulai Sila. A revolta militar encabeçada pelo chefe do Estado Maior do Exército, General Assumane Mané, contra o governo dirigido pelo Presidente João Bernardo ("Nino") Vieira é expressão da crescente insatisfação e da decepção aqui tantas vezes já exteriorizadas, da parte dos antigos combatentes pela liberdade da pátria, compartilhadas pela grande maioria da população.

Esses recentes acontecimentos na Guiné-Bissau estão contribuindo para que o discurso oficial hegemônico se esvazie e perca a sua aura, reiterando de forma dramática a triste atualidade da urgência de uma reinterpretação da História, reflexão essa encetada pelos romancistas pioneiros Abdulai Sila e Filinto de Barros.

Considerações finais

Todos os escritores aqui referidos têm em comum uma tarefa de recuperação da africanidade e da dignidade perdidas, de procura e de afirmação da identidade nacional: tanto os afrobrasileiros como os guineenses, cada grupo a seu modo, cada autor com seu estilo próprio, com sua voz única e específica. Trata-se de uma literatura exortativa, sim, literatura engajada, literatura social, no seu sentido mais amplo, mas literatura exercício estético de beleza e busca do eu e do nós, mais profundo e mais verdadeiro, que têm a ver com raízes, umbigo, magma; literatura incitamento a um mergulho dentro de um passado doloroso e de difíceis lembranças, incitamento à empatia, ao sentir com, ao fazer com, incitamento à adesão, ao "concerto do djunta mon", de que fala o escritor guineense Tony Tcheka (1996:69).

O passado, tanto o passado bom como o passado infame, tem que continuar sendo relembrado como uma parte da identidade do africano assim como do afrobrasileiro. Embora consciente de que um número cada vez mais numeroso de afrodescendentes tenham hoje em dia alcançado um nível social e financeiro muito elevado e a franja dos bem sucedidos seja cada vez mais larga, no mesmo poema Cuti não deixa esquecer: Hoje é amanhã e ontem [...] / chicotes modernos não só relembram são chicotes/ que batem que rendem mais aos fundos senhoriais (Cuti, Resposta).

Cuti, que sempre, em todos os seus escritos, convida e incita à reflexão, admoesta: Quem disse [...] que é preciso calar a voz dos ancestrais? (ebd).

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Notas

1. Sobre a ficção e a literatura guineense em geral, cf. Augel 1998.

2. Oswaldo de Camargo publicou em São Paulo seu primeiro livro, Um homem tenta ser anjo, já em 1958; de (OLIVEIRA SILVEIRA, no Rio Grande do Sul, apareceu Germinou, em 1962. Cuti, em 1976, deu à estampa em São Paulo seus Poemas da carapinha. Os Cadernos Negros, publicação coletiva que já tem vinte e dois números, começou em 1978. Para maior conhecimento da produção literária afrobrasileira, cf., entre outros, Zilá Bernd 1984, 1987 e 1992.

3. Sobre o assunto, cf. Guy Ossito Midiohouan, L'idéologie dans la littérature négro-africaine d'expression française, Paris: L'Harmattan, 1986:208 e ss.

4. P. L. Berger e T. Luckmann foram os teorizadores do construtivismo que considera os fenômenos sociais como criações da sociedade e não existentes por si só.